sábado, 23 de setembro de 2017

Refutando Gill, sobre a suposta crença na eleição incondicional do pai apostólico Clemente de Roma (primeira parte).
Recentemente li um texto onde o calvinista John Gill tenta colocar calvinismo em  Clemente de Roma. Fui procurar na minha biblioteca as referencias que o renomado calvinista cita como prova, mas ao me deparar com os escritos diretamente de Clemente de Roma, pude ver que Gill se equivocou em suas colocações. O presente artigo tem como objetivo responder ao renomeado calvinista colocando os textos dentro do contexto para que possamos ver a real teologia deste pai apostólico.  

Gill começa com a seguinte declaraçao:Clemente diz:

"Quando Ele quiser, e como Ele quer, Ele faz todas as coisas, e que nenhuma das coisas, que são decretadas por Ele, passará ou não será cumprida”

O que mostra o seu senso de dependência de todas as coisas sobre a vontade de Deus e da imutabilidade de seus decretos em geral.

Resposta

De acordo com Gill, essa citação é prova inequívoca que para o referido pai apostólico, todas as coisas acontecem porque foram decretadas por Deus. Para Gill, todas as mazelas da sociedade foram determinadas por Deus, mas será verdade que Clemente pensava assim? Vamos à citação:

"Nessa esperança, nossas almas se juntam Àquele que é fiel nas promessas e justo nos julgamentos. Aquele que ordena não mentir, não mentirá! Nada é impossível para Deus, exceto mentir. Reacenda-se, portanto, em nós a fé n’Ele, e reflitamos que todas as coisas estão próximas d’Ele. Com uma palavra sua de majestade, Ele constituiu todas as coisas, e com uma palavra Ele pode destruí-las. ‘Quem lhe perguntará: que fizeste? Ou quem resistirá ao poder de sua força?’ Ele fará tudo o que quiser e como quiser, e nada passará daquilo que foi por Ele decretado. Tudo é presente para Ele, e nada escapa à sua vontade. Pois ‘os céus narram a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos; o dia a transmite ao dia, e a noite a dá a conhecer à noite; não existem palavras, nem línguas que não ouçam suas voz’.” (1)

Perceba que a citação de Gill esta recortada e a conclusão que ele faz é desonesta. Veja a citação feita por ele mais uma vez:

"Quando Ele quiser, e como Ele quer, Ele faz todas as coisas, e que nenhuma das coisas que são decretadas por Ele, passará, ou não será cumprida."

Por aqui o leitor já percebe que tem algo errado quando compara a citação inteira com a recortada, mas agora vamos à conclusão de Gill que diz:

"O que mostra o seu senso de dependência de todas as coisas sobre a vontade de Deus e da imutabilidade de seus decretos em geral."

É lógico que a conclusão de Gill visa provar que para Clemente, cada detalhe do universo foi causado por Deus. Porem, tal conclusão é precipitada pelo fato de não se analisar o contexto e por entender os decretos de Deus como sendo fatalistas a ponto de pensar que todas as coisas são determinadas por Deus. Repare que nem a parte que Gill cita fora de contexto prova o calvinismo:

"Ele fará tudo o que quiser e como quiser, e nada passará daquilo que foi por Ele decretado. Tudo é presente para Ele, e nada escapa à sua vontade."

Em primeiro lugar, eu como arminiano não tenho problemas com essa frase, pois entendo que Deus faz exatamente "o que quer" e "como quer". Em sua soberania Deus decretou:

1) Decretou que nomeava seu filho Jesus Cristo mediador, redentor, salvador, sacerdote e rei.

2) Decretou que receberia em favor aqueles que livremente (capacitados por sua graça) se arrependessem e cressem em Cristo.

3) Decretou que administraria os meios que eram necessários ao arrependimento e à fé:

“Pela graça preveniente, o homem recebe poder para crer. A capacidade provém de Deus, porém o ato de crer deve ser ação própria do homem.” (Wynkoop, 2004, p. 58).

“A graça não é uma causa divina arbitrária, mas o dom de Deus que capacita o homem.” (Ibid, p. 61)

4) Decretou a salvação ou a perdição das pessoas baseado na presciência.

Esses são decretos de Deus que todo o arminiano concorda. Cremos que Deus faz a sua vontade e que Ele decretou que a salvação seria para aqueles que, capacitados pela graça, livremente cressem em Cristo! Existem decretos que Deus quis que fossem condicionais (exemplo: a Salvação) e decretos que são incondicionais (exemplo: a volta de Jesus).

Portanto, é forçar a barra concluir que apenas porque Clemente diz que "Deus faz tudo o que quer e como quiser, e nada passará daquilo que foi por Ele decretado" é indicio de calvinismo na patrística. É lógico que Ele faz o que quer e que seus decretos vão se cumprir, mas nem de longe isso indica que os assassinatos, pedofilia, estupros, roubos, latrocínios, suicídios, infanticídios, violências e varias outras aberrações foram causadas por Deus. Pensar assim é não levar em conta a própria epístola, pois a mesma diz:

"Portanto, se tudo Ele vê e ouve, temamos (a Deus) e destruamos os desejos impuros das ações vis, para que sejamos protegidos, pela sua misericórdia, dos julgamentos futuros." (2)

É interessante que Gill não leu o que Clemente diz logo abaixo do texto que ele (Gill) citou. A condicionalidade do texto é clara para qualquer pessoa ver! Para Clemente de Roma, precisamos destruir "os desejos impuros" das "ações vis" para que assim possamos ser protegidos pela misericórdia (ou graça) de Deus. Em outras palavras, precisamos não resistir à graça de Deus para escaparmos da condenação. É interessante que ele vai mostrar a importância de vigiar para não ser condenado no texto que segue:

"Caríssimos, vigiai para que seus numerosos benefícios não se tornem condenação para nós, caso não vivamos de maneira digna d´Ele, realizando na concórdia o que é bom e agradável aos seus olhos. Com efeito, em algum lugar se diz: ‘O espírito do Senhor é lâmpada que perscruta as profundezas das entranhas’. Consideremos que Ele está próximo e que nada lhe escapa de nossos pensamentos e de nossas decisões interiores”. (3)

Clemente aconselha as pessoas a vigiarem para não serem condenadas. Parece-me estranho que ele fale isso se realmente cresse em algo parecido com o calvinismo, não é mesmo? Porém, vemos que ele cria em coisas completamente diferentes como, por exemplo, a possibilidade de todos se arrependerem. Ele diz:

"Percorramos todas as gerações e aprendamos que, de geração em geração, o Senhor deu possibilidade de arrependimento a todos aqueles que queriam converter-se a Ele."

Interessante, Então Deus deu possibilidade de arrependimento a todas as pessoas que QUERIAM SE CONVERTER? É exatamente isso que o texto diz! Ele deixa ainda muito mais claro citando o exemplo de Noé, veja:

"Noé pregou o arrependimento, e os que o escutaram foram salvos."

Citando Jonas:

"Jonas anunciou a catástrofe aos ninivitas, e esses se arrependeram de seus pecados; aplacaram a Deus com suas súplicas e obtiveram a salvação, embora fossem estrangeiros em relação a Deus."

Os ministros da graça:

"Os ministros da graça de Deus falaram sobre o arrependimento, por meio do Espírito Santo."

O Senhor Jesus Cristo:

"E o próprio Senhor do universo falou do arrependimento, jurando: ‘Eu vivo, diz o Senhor, e não quero a morte do pecador, e sim que ele se arrependa’.”

E acrescenta também um propósito bom:

“Casa de Israel arrependei-vos de vossa iniquidade. Dize aos filhos do meu povo: Ainda que vossos pecados cheguem da terra até o céu, e que sejam mais vermelhos que o escarlate e mais sujos que o pano de saco, se vos converterdes a mim de todo o coração, e disserdes: Pai! — eu vos escutarei como povo santo. Em outra passagem, Ele diz assim: ‘Lavai-vos e purificai-vos; tirai da presença dos meus olhos a maldade de vossas almas; acabai com as vossas maldades. Aprendei a praticar o bem, procurai a justiça, libertai o oprimido, defendei o órfão e fazei justiça à viúva. Depois, vinde e discutamos, diz o Senhor. E ainda que vossos pecados estejam como a púrpura, eu os tornarei brancos como a neve; se estiverem como o escarlate, eu os tornarei alvos como a lã. Se quiserdes me ouvir, comereis dos bons produtos da terra; mas, se não quiserdes me ouvir, a espada vos devorará’. Isso, de fato, foi a boca do Senhor que falou. Na sua onipotente vontade, Ele decidiu que todos os seus amados tenham possibilidade de arrependimento.” (4)

Com tudo isso que foi postado, fica evidente que Gill (assim como uma pagina por ai...) errou e errou feito ao tentar por calvinismo em Clemente com essa citação!

Texto: Pr. Anderson de Paula
Revisão: Aléfe Bird

Fonte: (1) Das citações: Clemente de Roma, Pais Apostólicos - Primeira Epístola aos Coríntios, 2ª Edição da Editora Paulus pagina 23.
(2) Ibird: Pg 17.
(3)Ibird: Pg 21.

(4)Ibird: Pg 16.